Timidez tema na revista Vida Simples
O leitor Guilherme Cortezi Buccironi diz: “Sou muito tímido. Tenho dificuldade para falar com pessoas estranhas e aparecer em público. Não consigo me relacionar direito, pois é difícil expressar o que sinto”
Posso falar sobre timidez com autoridade – fui um menino que, quando brincava de Sala da Justiça, queria ser o Homem Invisível. Nos primeiros anos do colégio, época em que as meninas e as espinhas aparecem ao mesmo tempo, eu sofri tanto por causa da timidez que muitas pessoas achavam que eu seria uma espécie de ser isolado, um eremita urbano. Felizmente essa profecia não se realizou. É bem verdade que a maioria dos adolescentes apresenta algum grau de timidez que desaparece no início da vida adulta, notadamente após os 20 anos, mas eu apresentava um grau maior que meus colegas.
Lembro-me de vários episódios em que a timidez me fez passar maus bocados. Certa feita eu e meus amigos estávamos impressionados com a beleza de uma garota nova na cidade, mas ninguém tinha coragem de chegar perto. Até que aconteceu o improvável: um dia ela perguntou meu nome.
Juro que levei tempo para lembrar como eu me chamava. E, quando falei, saiu aquela voz de adolescente, metade grossa, metade fina. Foi quando desejei ser tragado pela terra. Ela, então, com toda a naturalidade, me perguntou se eu sabia como conseguir um livro, onde era a biblioteca, coisas assim. Era tudo o que ela queria – uma informação. Aí retomei o controle, porque sabia as respostas. Depois fiquei horas pensando sobre o choque térmico provocado pela timidez. O frio glacial que se apoderou de mim quando ela falou comigo transformou-se em um calor infernal quando tive que responder, para, depois de passado o susto, surgir um calorzinho morno e aconchegante, em que me senti confortável, fora de perigo, ainda que me chamasse de idiota mil vezes. E a vida foi passando, entremeando embaraços com superações. No fundo, uma história comum.
Barreira transponível
A timidez é algo assim, como uma barreira que nos afasta do mundo circundante, impedindo que nossos pensamentos e sentimentos sejam exteriorizados. O tímido prefere não se expor porque teme a crítica, e o faz por dois motivos. Se a crítica for severa, irá confirmar as suspeitas de sua inferioridade. Se for favorável, colocará em cheque sua autocrítica. Portanto, não há saída.
Pode ser que a timidez não impeça a pessoa de se desenvolver, trabalhar, produzir e realizar-se. Mas prejudica a qualidade da vida. Ela depende de como ocorre o processo de interação do indivíduo com o meio onde está inserido. Quanto melhor for a qualidade dessa interação, maior o conforto, a troca e o aprendizado. Qualquer barreira que isole a pessoa do convívio social provoca fissuras em seu desenvolvimento e compromete sua felicidade. Imagine viver em um pátio separado do resto da cidade por um muro alto, que impede a comunicação, apesar de não impedir que você perceba que existe vida lá fora. Pois a timidez é esse muro.
Mas, calma, nem tudo está perdido. Primeiro temos que saber que todas as pessoas têm algum muro. Pode ser mais alto ou mais baixo, mas não há ninguém que não revele o desejo de que alguma coisa fosse diferente em si e em sua relação com o mundo. Segundo, é importante frisar que o tal muro pode ser retirado, ainda que com algum esforço, é claro.
O psicólogo americano Carl Rogers é conhecido por ser autor da Teoria do Eu. Ele percebeu, em seu trabalho clínico, que as pessoas se referiam a si mesmas como se fossem outra pessoa, chamada Eu. “Sinto que não estou sendo meu verdadeiro eu” – esse tipo de manifestação é bastante comum em consultórios de psicoterapia. O que a pessoa está querendo dizer, na verdade, é que ela acredita que sua verdadeira essência é diferente daquela que ela demonstra atualmente.
Os que são tímidos, no íntimo, sabem que não precisam ser. E gostariam de não ser, mas como ultrapassar a barreira? Carl Rogers criou uma abordagem interessante. O terapeuta aceita a pessoa que está à sua frente como ela é. A primeira impressão é que o terapeuta não está entendendo o desejo do paciente de modificar seu interior e aproximar-se de seu verdadeiro eu. Com o tempo, entretanto, fica claro que esse “eu” nada mais é que uma introjeção da imagem dos outros.
Quando a pessoa finalmente se aceita como é, abre-se um imenso caminho que leva a dois lugares: ao convívio mais equilibrado e harmônico com os outros e à condição de promover mudanças consistentes, baseadas em suas tendências e seus potenciais e não em modelos auto-impostos. Engraçado, o ser humano. Ele só começa a mudar depois que começa a gostar de si mesmo como é.
Esse é um bom caminho para lidar com a timidez. Quando você se aceita como é, passa a acreditar que os outros também o aceitarão. E, a partir desse convívio livre de conflito, tem início um processo natural de desenvolvimento, e você vai passando da fase de se aceitar para a fase de gostar de si mesmo.
Timidez não é doença
Há uma condição mental que a ciência trata como doença: a fobia. Trata-se de um intenso medo, uma aversão irreprimível a alguma coisa. Quando essa coisa é a relação com outras pessoas, falamos de fobia social. Quem sofre desse transtorno apresenta uma intensa ansiedade em situações em que tem de mostrar desempenho social, às vezes chegando a verdadeiro pânico.
Poderíamos dizer, após uma análise superficial, que a fobia social é uma forma grave de timidez, mas não é bem assim. Observado em suas reações, o portador de fobia social parece uma pessoa muito tímida, e é estimulado a deixar de lado a timidez a partir de atitudes. Entretanto, o que ele precisa é de mudanças estruturais em sua personalidade. Necessita de ajuda terapêutica especializada, pois seu medo é irracional, desproporcional e fora de controle.
Felizmente isso é raro. O comum é a timidez pura e simples, em que a pessoa também experimenta ansiedade, mas, mesmo assim, vai levando a vida e amadurecendo o convívio com o mundo na medida em que os anos passam. O tímido reconhece que é tímido, e sabe que é responsável pelo medo que tem de se expor à crítica dos outros. O portador de fobia social não é assim. Ele culpa os outros pelo medo que carrega permanentemente. Preferiria mudar o mundo a mudar a si mesmo, o que é irracional e impossível.
Portanto, qualquer um que diga que é tímido é porque é mesmo – e não é, com certeza, um fóbico social. O próximo passo é aceitar a si mesmo como uma pessoa única, que carrega a mistura excessivamente humana de virtudes e defeitos. Ninguém é desprovido de insatisfação com alguma característica que carrega pela vida. Nem mesmo os ídolos do cinema, nem os muito ricos ou muito belos, nem os imensamente famosos. Eles não são perfeitos, são estereótipos quase sempre inimitáveis e, por serem humanos, têm seus próprios modelos, que tentam imitar, sem, na maioria das vezes, conseguir.
O antídoto
A timidez não merece tratamento, pois não é uma doença. Mas pode ser atendida com medidas que visam diminuí- la. Eu comecei este artigo confessando que me considero um tímido. Vou contar mais uma de minhas características: sou asmático. Aliás, combinação comum, asma com timidez. Uma alimenta a outra. A asma dificulta a respiração, a timidez dificulta o convívio. Nenhuma das duas impede, apenas dificulta, imobiliza, entristece.
Antigamente, o asmático era protegido, aquecido, deixado dentro de casa, na cama, coberto dos pés à cabeça. Depois que entendemos as causas alérgicas e emocionais da asma, a conduta com o asmático mudou, e ele passou a ser mais exposto ao ar puro. Eu vivi as duas épocas. Enquanto ficava em casa, superprotegido, minha asma só fazia aumentar. Ela começou a diminuir, até passar por completo, ou quase, quando comecei a me expor àquilo que mais desencadeava as crises: o exercício físico. Para os asmáticos, o exercício mais indicado é a natação. Fui dar minhas braçadas, e até que não me saí mal na empreitada.
A necessidade de resolver um problema de saúde fez com que eu me tornasse nadador, apesar da imensa limitação física no início. Ainda sou asmático, mas a asma está sob controle. Pois com a timidez foi a mesma coisa. A necessidade, no entanto, foi de outra natureza: eu precisava ganhar a vida. E sabe qual foi minha melhor oportunidade? A de dar aulas! Mas como, com a timidez que me tirava o fôlego mais que a própria asma? Foi quando a coragem teve que ser maior que o medo – aliás, dois companheiros inseparáveis.
A primeira aula, em um cursinho preparatório para o exame supletivo, deu mais frio na espinha do que o frio que senti na pele quando comecei a nadar. Tremia como vara verde. Eu conhecia a matéria que devia ensinar. Sabia, com certeza, muito mais que meus alunos. Mas a timidez... Essa funcionava como uma ave agourenta a garantir que os alunos me fariam perguntas que eu não saberia responder. E eles me achariam ridículo, burro e feio. Mas, como é a necessidade que ensina o sapo a pular, tive que encarar o giz e o quadro-negro.
O que era para ser bico de estudante transformou-se em uma carreira para toda a vida. Até hoje amo profundamente o magistério, e atribuo parte desse amor ao fato de que foi ele que me livrou do sofrimento que a timidez me dava. Repare: eu não disse que estou livre da timidez, e sim do sofrimento, pois aprendi a lidar com as relações humanas pela insistência, determinação e esforço. Não sei quantas piscinas nadei e quantas aulas ministrei, só sei que foram muitas. E sei que a asma e a timidez ainda estão em mim, mas hoje eu estou no controle, não mais esses dois embusteiros.
Não, ninguém precisa virar professor para controlar a timidez, assim como para a asma existem outras medidas mitigadoras. Mas, acredite, sem aceitar-se como é, e sem se expor ao convívio humano, aí fica difícil. E digo mais: atribuo minha qualidade didática, reconhecida como muito boa, ao fato de que eu tinha de ser aceito, portanto tinha de ser o mais didático possível. Os grandiloqüentes, comunicativos, extrovertidos não necessariamente erão os melhores comunicadores, pois eles não questionam sua aceitação. Os tímidos, esses precisam se superar, por isso costumam estar entre os melhores após vencer suas barreiras interiores.
Portanto, caros tímidos, encarem sua característica não como uma limitação, mas como o forte motivo que os levará ao melhor dos mundos – o das relações humanas baseadas na qualidade, na essência, na verdade. Sem imitar modelos e invejar os extrovertidos.
Eugenio Mussak é educador e escritor. Neste espaço, faz reflexões a partir de inquietações levantadas pelos leitores. Envie suas dúvidas para: pensandobem@abril.com.br
fonte: http://vidasimples.abril.com.br/edicoes/051/pensando_bem/conteudo_235821.shtml
Que bacana!
ResponderExcluirÉ realmente muito bom ver textos assim, em que pessoas que tinham - ou ainda têm - as mesmas limitações que eu, ou que nós temos, conseguem se adequar e alcançar seus objetivos.
O que me preocupa é que até hoje, não sei o que fazer profissionalmente, eu me saio bem onde trabalho, mas sinto que não é o que deveria fazer. Eu adoraria achar minha profissão como esse educador achou. Muitas pessoas falam que eu tenho dom pra jornalismo, escritora, alguma coisa na área de informática, só que eu não sei. E se eu não sei, como vou enfrentar algumas situações?
ResponderExcluirA superaçao desse cara é um exemplo, a forma que ele descreve é ótima, ajuda muito, mas eu naõ consigo , neste momento , me aceitar totalmente, não sei o que fazer da vida e estou em conflito comigo o tempo todo.
Eu nunca imaginei que a não esolha por uma profissão fosse mexer tanto comigo.
Bom texto!
Abçs